Sociedade

A sexualidade é uma invenção social

 
Um estudo e retrospetiva histórica, pode ajudar a compreender a evolução da intimidade ao longo dos tempos, as regras e os condicionalismos que, provavelmente ainda marcam mentalidades.

 
Se muitos entendidos afirmam que, os filmes despertam aquilo que já existe, são muitos os que acreditam que, não é através dos filmes que se dá lugar ao que não existe dentro de cada pessoa, isto porque todos os indivíduos são influenciados pela sua cultura, educação e pela informação que recebem do meio em que estão inseridos. 
 
Nesse sentido, “a sexualidade é uma invenção social, pois o termo surgiu com base numa discussão sobre o sexo. Nesses discursos, havia a intenção de se normalizarem as regras que, a partir daquele momento histórico, serviriam ao sexo.”
 
O termo sexualidade surgiu no século XIX, marcando algo diferente no uso dessa palavra e estabelecendo o desenvolvimento de campos de conhecimento diversos; a instauração de um conjunto de regras e de normas apoiadas em instituições religiosas, judiciais, pedagógicas e médicas. 
 
Mudanças do modo pelo qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, desejos, prazeres, sentimentos, sensações e sonhos. (Foucault, 1998, p.9)
 
Tendo por base este apontamento, reforça-se a ideia de que, a cada pessoa cabe ainda hoje a capacidade de desenvolver ou de vivenciar os seus próprios limites e imaginação. 
 
No fundo, a evolução quer precisamente “determinar” que cada sujeito seja capaz de experimentar e viver as sensações a seu modo, o que nem sempre é fácil quando se trata de um conhecimento adquirido pela sociedade e, “em que é necessário ajustá-lo a cada personalidade e realidade.”
 
A sexualidade está intimamente ligada à cultura, à educação, à personalidade e às circunstâncias emocionais do indivíduo; não envolvendo somente os órgãos genitais, mas também as zonas erógenas do corpo, os impulsos, desejos e fantasias. 
 
Dessa forma, não abrange somente o ato sexual, que pode ser visto como um meio de reprodução e também como meio de comunicação, utilizado pelo impulso primitivo da reprodução e do prazer. 
 
“É impossível falar em sexualidade sem recordar a herança cultural que recebemos dos antepassados, incluindo os aspetos morais que determinaram em cada época quais os padrões de sexualidade considerados normais.” (Telarolli, apud. Kupstas, 2000).
 
Neste sentido, para compreender a sexualidade, é necessário um olhar multidimensional sobre o ser humano, visto que cada indivíduo possui interesses próprios, sentimentos e atitudes que são influenciados pelas perceções particulares ou coletivas do período vivido.
 
É interessante recuperar que, ao longo da história da humanidade, a sexualidade ficou a cargo do Estado, da Igreja e das famílias. (Master’s e Johnsons’s, 1979.)
 
Na Grécia Antiga, o homem já tinha a sua esposa, as suas amantes e um jovem que o acompanhava nas guerras. A mulher era um bem de valor sexual e reprodutivo. 
 
A sexualidade estava voltada ao grande homem que era merecedor de um jovem companheiro. Essa relação era marcada pela amizade, gratidão, lealdade e fidelidade.
 
Com os romanos, houve uma transculturação dos gregos, foram feitas adaptações das leis gregas para unificar o povo conquistado. A orgia fazia parte desse quotidiano, não existiam regras nem limites ao prazer corpóreo. (Nunes, 1987.)
 
Com o cristianismo surgiu a castidade como símbolo máximo, que aparece para apagar da história o liberalismo sexual romano. José é casto, Maria é virgem e Jesus é o homem livre dos pecados humanos. Na era medieval, o corpo é o pecado. 
 
A sexualidade tinha de ser contida e controlada. No final do século VII, “tudo sobre sexo é proibido. Sexo é o próprio demónio e deveria ser punido. Todos aqueles que geravam tentação deveriam ser queimados”.
 
Como o Estado era subjugado às crenças religiosas, era a igreja quem praticava esses atos de tortura.
 
Foi na era vitoriana que surgiu a formalização do casamento e com ela, a exigência dos grandes proprietários, aqueles que detinham terras.
 
Os pais casavam os filhos com o objetivo de unir terras e aumentar o património. 
 
A partir desse momento histórico, os valores da burguesia foram emergindo, demonstrando, assim, que a grandeza da sociedade estava marcada pela produção e pelo trabalho. 
 
Devido a isso, a Igreja começou a estimular o sexo para procriação, pois o capitalismo necessitava de filhos.  (Foucault, 1984.)
 
Foi a partir de então que surgiu o amor cortês, no século XIX, em que o homem, pela primeira vez na história, respeita a mulher, sendo esta a inspiração para o amor. Há uma sublimação ao sexo pelo respeito e amor. (Foucault, 1984.)
 
No séc XX, a sexualidade passou a ser investigada, pelo que, muitos cientistas levantaram hipóteses sobre o assunto, o que culminou nas teorias de Sigmund Freud (1856-1939) que mudou o rumo da história e deu início a uma das grandes descobertas do século. Freud, um médico nascido em Freiberg, demonstrou a importância da sexualidade na vida humana. 
 
Embora as suas teses não tenham sido aceites de imediato, a capacidade de Freud organizar ideias, numa síntese teórica e persuasiva, causou impacto no mundo. 
 
Juntamente com essas ideias, Freud elaborou uma teoria sobre o sujeito e um método clínico, com o nome de Psicanálise, praticado por meio da técnica de associação livre. 
 
É desta forma que, Freud faz a interpretação das significações inconscientes de vocábulos, atos e criações imaginárias de uma pessoa.
 
Freud marcou e surpreendeu o mundo com “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), mostrando tratar-se  de algo que não pode ser compreendido no modelo de instinto, já que este é tido como uma conduta animal fixada de modo hereditário, apresentando-se relativamente da mesma maneira em todos os que compõem tal espécie animal. 
 
Nesse sentido, a distinção entre o homem e os outros animais reside na imprevisibilidade do objeto e na flexibilidade dos modos de realização.
 
Para clarificar a sua teoria, Freud abordou a sexualidade infantil com afirmações que se repercutiram profundamente nas conceções da sociedade da época, que via a criança como um ser dotado de “inocências”.
 
Desta forma, Freud contrariou a tese de que a sexualidade estava somente ligada à reprodução e explicou que, desde o início da vida, há uma função sexual, que assume um papel importante, e que a libido é a energia das pulsões sexuais.
 
Freud frisou que, há erotização do corpo desde o princípio da vida existindo, dessa maneira, um desenvolvimento gradual no progresso referente às formas de bonificação e de relação com determinado objeto.
 
Para muitos “opositores à sua teoria”, Freud associou todos os comportamentos humanos à sexualidade.
 
Recorde-se a Fase oral (0 a 2 anos). A ação de ingestão do alimento e a excitação da mucosa dos lábios e da cavidade bucal como forma de  proporcionar o prazer nessa fase.
 
Não menos polémica, a fase anal (entre 2 a 4 anos aproximadamente) em que Freud refere o prazer no controle das esfíncteres (anal e uretral) e realça a zona erógena: o ânus e o modo de relação do objeto é de “ativo” e “passivo”.
 
A fase fálica (de 3 a 6 anos), representa a erotização no órgão sexual. A distinção que marca a oposição fálico-castrado, substituta do par atividade-passividade, é o interesse que o menino possui pelo próprio pénis em confronto à descoberta da ausência deste órgão na menina, para a qual tal verificação motiva o aparecimento da “inveja do pénis” e o consequente ressentimento em relação à mãe por esta não lhe ter dado esse órgão.
 
Logo após, é caracterizado o período de latência, que se estende até a puberdade e, nesse tempo, há sublimação total ou parcial das atividades das pulsões sexuais. (Freud, 1905, p. 102.) 
 
Por fim, a fase genital que se atinge na adolescência, em razão de o objeto desejado estar no outro e não mais no próprio corpo; existindo uma busca de satisfação erótica e interpessoal. (Freud, 1905, p. 103.)
 
Segundo Freud, num primeiro momento, a escolha do objeto sexual, é enfatizada por alvos sexuais de caráter infantil, acontecendo por volta dos 2 a 5 anos de idade.  Com a puberdade (segundo momento), as pulsões parciais são organizadas, fazendo com que as zonas erógenas se submetam à prioridade genital. 
 
Dessa forma, a libido, que era, principalmente, autoerótica, procura o objeto sexual em função da libido do objeto.
 
Essas mudanças ocorrem junto às alterações físicas da puberdade e todas as transformações ocorridas nesse período se direcionam a uma distinção sexual cada vez maior, visto que os dois sexos terão papéis diferentes. 
 
Relativamente à dificuldade em distinguir masculino e feminino, Freud define um e outro, como passividade (feminino) e atividade (masculino), havendo, portanto, a afirmação de que a libido é masculina, visto que a pulsão é sempre ativa.
 
Mesmo diante de tal dificuldade de diferenciação, é-nos mostrado que a puberdade do menino e a da menina são diferentes, sendo a sexualidade desta mais afetada pelo recalcamento (desvio das pulsões sexuais para outras finalidades), ocorrendo, assim, a transferência da excitabilidade clitoriana para a vagina, enquanto a zona de excitação do homem (glande) continua sendo a da infância.
 
Partindo dos desvios do objeto e do alvo sexuais, Freud relata que a crença na união entre o homem e a mulher é fruto da teoria popular sobre a pulsão sexual; teoria esta que se assemelha a uma fábula poética (divisão de duas metades, as quais serão unidas pelo amor). 
 
Portanto, homens e mulheres que não tenham, como objeto sexual, o sexo oposto causam estranhamento e surpresa na sociedade; assim, é iniciado um trabalho sobre a homossexualidade (denominada inversão sexual).
 
Também Freud incluiu o sadismo e o masoquismo nos seus trabalhos, mostrando que, existem diferentes formas de vivenciar o prazer e que, estas nem sempre são as mais adequadas para a satisfação, sobretudo se incluírem violência e sofrimento.
 
Foi a partir deste “corte” ideológico encetado por Sigmand Freud que surgiram as mais diversas e interessantes posições acerca da sexualidade, a ponto de se dar continuidade à luta pela igualdade de género, de se colocar o prazer feminino ao lado do masculino, de se incutir na mulher a noção de desejo e prazer sexual, sem esquecer a opção de procriar que, igualmente está a cargo do casal e não da sociedade. 
 
Perante este resumo, verifica-se que, a sexualidade passou por diferentes fases ao longo da história, mas que efetivamente traços do tempo podem estar vincados em muitas mentalidades e funcionar como um condicionalismo para a libertação sexual, que será seguramente um desafio para a evolução que se pretende.
 
A sexualidade é uma invenção social, mas cada sujeito tem o direito de a transformar em algo pessoal e de viver o sexo da forma que mais lhe dá prazer, afinal o desejo nasce connosco!
 
Fátima Fernandes