Comportamentos

Quem é que disse que temos de ser perfeitos?

 
Tendemos a colocar fasquias de perfeição demasiado elevadas em nós mesmos e nos outros, mas porquê?

 
Porque fomos criados numa cultura que tem alguma dificuldade em lidar com o erro e com a imperfeição, chegando ao ponto de se “crucificar” quando erra e de apontar facilmente o dedo aos outros como se igualmente não tivessem espaço de manobra para falhar e para corrigir os seus erros. Somos assim porque fazem o mesmo connosco, mas só saindo desse círculo vicioso que nos remete para “becos sem saída”, poderemos aceder a novos conteúdos.
 
Se há quem pense que não podemos fugir dessa prisão que nos persegue desde que nascemos e em que contactamos com esses traços culturais, são muitos os entendidos que aliviam essa pressão e nos ajudam a compreender que, efetivamente ninguém é perfeito e ainda menos consegue relacionar-se com pessoas perfeitas, simplesmente porque a perfeição não existe.
 
Somos humanos, temos emoções, desejos, pensamentos e um conjunto de valores e crenças que nos levam a cumprir as leis e as regras da sociedade, mas que nos permitem fazer as nossas escolhas no seio do nosso lar, na nossa intimidade e com as pessoas com quem nos sentimos à vontade, mas sempre longe dos padrões da perfeição.
 
Recebemos uma herança cultural “pesada” e exigente, mas à medida em que vamos conhecendo outras realidades, podemos adotar um estilo de vida mais descontraído e “amigo” de nós mesmos. Temos liberdade para compreender o que se deve cumprir para manter as relações sociais de forma harmoniosa, tal como sabemos onde é que podemos extravasar para nos sentirmos mais livres e felizes; para nos descobrirmos enquanto pessoas e, temos muitos espaços onde isso é possível, basta que tomemos consciência disso e que saibamos o comportamento a adotar em cada contexto.
 
Sabemos que, quando namoramos ou temos um compromisso mais sério com alguém, é porque nos sentimos confortáveis com essa pessoa. Podemos expressar os nossos sentimentos e desejos, ao mesmo tempo em que recebemos as emoções e a recetividade do outro. Não há lugar para a perfeição na intimidade entre dois adultos. Há espaço para a criatividade, para o prazer e para o bem-estar.
 
É verdade que temos de selecionar os locais e as pessoas onde podemos afirmar-nos em liberdade, mas isso também é humano e faz parte da nossa evolução. É importante saber estar e respeitar os outros para igualmente sermos respeitados, mas isso não nos deve retirar o prazer e tudo aquilo que nos caracteriza.
 
Tenho liberdade para gostar mais de umas pessoas que de outras, tal como me posso permitir sentir injustiçada com os comportamentos de muita gente e, por isso afasto-me desses maus tratos sem o “peso” de me considerar imperfeita, mas sim pessoa que não se permite ser mal tratada ou desrespeitada.
 
Não podemos confundir as coisas, pois em sociedade temos de adotar uma postura que nos permita sermos aceites. Para tal, cumprimos os nossos deveres, aquilo que faz parte das regras de boa convivência social, onde se inclui o emprego e o contrato que assinamos com as pessoas responsáveis. Longe da perfeição aqui também, porque o erro é humano e todos falhamos de alguma forma, mas se tivermos consciência disso, aceitamos a falha e corrigimo-la. Acatamos orientações de quem sabe mais do que nós ou está mais preparado para cumprir uma determinada função.
 
Apesar de cumprir esse conjunto de orientações sociais, sou livre para alimentar ou não, as crenças que herdei da minha infância. Tenho liberdade para escolher os grupos a que quero pertencer, tal como sou livre para decidir com quem quero partilhar a minha intimidade.
 
É verdade que uma larga maioria das mulheres portuguesas ainda considera que, se não tiver um marido, perde o seu direito à vida, mas isso não passa das suas cabeças, porque na prática, qualquer homem e qualquer mulher tem o seu direito à vida assegurado com ou sem casamento, esteja com uma pessoa do sexo oposto ou com alguém do mesmo sexo.
 
Para sermos livres, precisamos de saber aquilo que considerarmos oferecer-nos essa liberdade. Eu serei livre se concordar com as minhas escolhas e se respeitar as dos outros e, acima de tudo, se não me preocupar com o que os outros pensam a meu respeito, muito menos com a ideia de ter de ser perfeita.
 
A perfeição é uma invenção social que resulta da falta de conhecimento mais abrangente, pois quando percebemos o que é ser pessoa, verificamos facilmente que não somos máquinas e que falhamos, por muito que tentemos dar o nosso melhor. É o conhecimento que nos prepara para sabermos isso e para nos afastarmos dessas ideias criadas pela sociedade e que nos massacram pela impossibilidade de concretização.
 
Não há casamentos perfeitos, muito menos pais ou filhos perfeitos. Não há profissionais que não erram e ainda menos grupos perfeitos. Todos temos sentimentos e são eles o nosso ponto forte e fraco ao mesmo tempo, pois quem sente, não consegue moldar-se a tudo e ainda menos cumprir tudo o que lhe é proposto.
 
É fácil assumir que a perfeição não existe em mais nada que não nas mentes de quem nela acredita.
 
A partir do momento em que as vontades dos outros deixam de me incomodar, eu sou capaz de afirmar as minhas, pois tendemos a imitar outros humanos e, quando reunimos um conjunto de ferramentas pessoais que nos permitem afirmar quem somos, deixamos cair a perfeição e passamos a afirmar-nos enquanto pessoas com desejos e vontades.
 
Estamos presos ao que queremos, não ao que nos incutem ou tentam convencer, por isso, é importante que dediquemos algum tempo a observar a vida alheia para conhecermos mais do mundo e de nós mesmos. Isso dá-nos abertura e abre-nos o leque de possibilidades, muito mais do que se nos limitarmos a reproduzir aquilo que nos foi ensinado na infância, que nos foi dado como perfeito, mas que falha tal como qualquer outra orientação.
 
Paramos quando temos um propósito importante; algo que queremos melhorar, nesse sentido, vale a pena dedicar algum tempo a nós mesmos e ao conjunto de crenças que fomos recebendo e acumulando, muitas das quais já perderam o “prazo de validade” e merecem uma transformação, uma atualização. 
 
O meu desafio de hoje é que faça esse exercício e tente procurar se conhece alguém perfeito no seu leque de amigos ou conhecidos. A partir daí, permita-se assumir que também é imperfeito e que terá um percurso interessante de transformar essas crenças do passado em algo que “passou à história” e, empenhe-se em construir os seus novos valores. Vai ver que vale mesmo a pena investir em si e na sua imperfeição! Alimente o prazer de cada dia, os seus sentimentos, desejos e necessidades e perceberá que “quem sofre com o pouco que lhe falta não goza o muito que tem”, por isso, aproveite e seja muito feliz!
 
Fátima Fernandes