Família

Até que ponto a (sua) família é um “porto-seguro”?

 
Para respondermos a esta questão, temos de nos suportar, em linhas gerais, do que se entende por família.

“A família (do termo latino família) é um agrupamento humano formado por indivíduos com ancestrais em comum e/ou ligados por laços afetivos e que, geralmente, vivem numa mesma casa. Constitui uma das unidades básicas da sociedade”.
 
Partindo deste pressuposto, são muitas as questões que nos chegam à mente, sobretudo se pensarmos na violência doméstica que tanto compromete os laços afetivos, nos problemas que a originam e a comprometem, sem esquecer que cada indivíduo é livre de escolher o seu conceito de família, mas que este está condicionado pela sua educação e formação pessoal.
 
Quer isto dizer que, para além de desejarmos que uma família seja o encontro de laços afetivos, são muitos os condicionalismos que os comprometem e impedem que tal se concretize.
 
É um facto que, praticamente só se fala em família no Natal e nas demais quadras festivas, mas este deve ser um tema diário nas nossas vidas, seja pelo valor que representa diariamente, seja pelo que não representa e que precisa de ser trabalhado.
 
Faz sentido que, após um dia de trabalho ou de escola, o sujeito chegue a casa e encontre aquele grupo de afeto, compreensão e apoio, com quem possa partilhar o seu dia e trocar impressões acerca do que precisa ou tem para dar.
 
É essencial que, a casa seja o nosso porto-seguro, o local onde nos sentimos livres e confortáveis com o nosso grupo de referência.
 
Faz sentido que, uma criança saia da escola e se sinta estável na presença dos seus familiares, tal como para os adultos o aconchego do lar é um reforço e uma preparação para o dia seguinte.
 
Deve fazer-nos confusão pensar na família que todos deveriam ter e na família que “caiu em sorte” de tantas pessoas que não sabem o que isso é. Pessoas que nasceram num ambiente negativo, pessoas que sofrem maus-tratos de vária ordem, pessoas de qualquer idade que nem sequer se apercebem da dimensão e do impacto dessa violência. Pessoas que nunca conheceram uma alternativa, mas que ouvem e vêm retratos de famílias estáveis e felizes e que acreditam ser só para alguns.
 
Penso que a nossa sociedade está melhor quando qualquer cidadão for capaz de se analisar e de dizer a si mesmo se tem a família que merece ou a que “lhe caiu em sorte”, o problema é que, a maioria das pessoas que vive sob pressão e algum tipo de violência, nem se dá conta daquilo de que é alvo.
 
Considera que “só por ter companhia” já é um ganho quando, como já vimos, família é muito mais do que isso. Família exige respeito pelos seus membros, família exige partilha do mais positivo e compreensão face aos problemas dos outros. Família requer entrega, trabalho diário para a sua manutenção equilibrada e saudável, tal como pressupõe liberdade de comunicação e de pensamento.
 
Cada membro de uma família deve ser capaz de analisar a sua condição e tentar melhorá-la. Com atribuições distintas consoante a idade, a família reveste-se de um sentido de responsabilidade dos seus membros que zelam para que o grupo funcione o melhor possível, sabendo que uma família não pode aceitar qualquer tipo de violência.
 
Neste tempo de Pós Verdade em que vivemos, devemos estar atentos ao que pode impedir que uma família funcione livre e naturalmente. Deixou de estar em causa quem se agrupa com quem, sendo de evidenciar a qualidade desse agrupamento. Não é prioridade quem ganha mais ou menos, importando apenas que, em conjunto, as pessoas reúnem meios para a sua sobrevivência. Deixaram de existir chefes de família, para passarmos a ter pessoas responsáveis e empenhadas no bom funcionamento e relacionamento familiar e, sabemos cada vez mais que, quanto mais pessoas estiverem conscientes destas condições, menos cenas de violência teremos no nosso país. Muitos menos casos de violência no namoro surgirão para manchar a nossa consciência e dizer que não temos feito o suficiente para mudar mentalidades e, mais convictos estaremos de que, quanto menos se apostar na família como um porto-seguro, mas crimes de violência doméstica servirão de manchetes nos nossos jornais.
 
Recorde-se que, os números aumentam de ano para ano, o que quer dizer que, o muito que se tem feito para travar esse flagelo, é pouco diante da sua dimensão. Como dissemos anteriormente, muitas pessoas consideram “normal” o ambiente em que vivem porque não conheceram uma alternativa, porque pensam que só algumas famílias têm esse direito à felicidade, porque não se desenvolveu sentido crítico suficiente para dizer que não se quer fazer parte de um grupo que é tudo menos uma família.
 
A forma como cada indivíduo idealiza a sua família, é muito produto do que viveu, sendo essencial informar mais e melhor para que se desenvolva esse desejo e capacidade de construir algo novo, uma família mais parecida com aquilo que se deseja para nós e menos o espelho do que já se viveu.
 
Um jovem será capaz de constituir uma família sem violência quando cresceu nesse meio, somente se for alertado para o crime que está em causa e, ao mesmo tempo, ser reabilitado para que possa idealizar uma relação sem esse tipo de pressões e atos. De outra forma, tenderá a reproduzir aquilo que viu na casa dos pais.
 
Uma rapariga que viu a mãe apanhar pancada ou ser humilhada pelo pai, certamente que terá mais dificuldades em se proteger da violência de um namorado, pois para ela, será normal esse tipo de violência. E é aqui que queremos chegar, é preciso desenvolver o sentido crítico nas pessoas para que compreendam que a violência, para além de ser um ato criminoso, não produz qualquer tipo de felicidade e bem-estar a uma família. Temos de punir todas e quaisquer formas de violência, sem esquecer que não se trata apenas de agressão física, os nomes que se chama, as humilhações, pressões, chantagens, ridicularizações também são uma forma de violência tal como o comando do dinheiro, o controle de telefones e de saídas de casa, as amizades e daí por diante. Temos de pensar na família que queremos e não na que tivemos e, em muitos casos, é preciso pedir ajuda especializada para o conseguir, mas o importante é que se concretize, não é uma vergonha ser apoiado para aprender a ser feliz.
 
A tarefa é longa e árdua, mas é a única forma de mudarmos mentalidades: mostrar que se tem o direito de construir uma família com alicerces e diferente daquele ambiente violento e deprimente em que se cresceu e, a tarefa é de todos.
 
Temos de suprimir a ideia de que “entre marido e mulher não se mete a colher” e assumir que, nem tudo o que “era do tempo dos nossos pais e avós” era positivo. Note-se que a violência doméstica não era crime, por exemplo, tal como a violação e abuso de menores parecia escapar à lei e à crítica dos demais familiares.
 
É nesta base que temos de evoluir. Deixar de lamentar aquilo que foi e passar a agir naquilo que se pode mudar e, há mesmo muito por fazer em todas as frentes. Este apontamento tem como objetivo lançar dúvidas e questões que se julgam pertinentes para os nossos leitores e, ao mesmo tempo, falar abertamente do assunto que não nos deve envergonhar, mas sim possibilitar o desabafo no local certo, seja nas instituições de apoio, seja nas escolas que os mais novos vão dizendo o que se passa em casa, seja junto das forças de segurança.
 
Não podemos tratar bem quem nos trata mal, muito menos esconder que somos vítimas de qualquer tipo de violência, já que essa atitude apenas esconde o problema debaixo do tapete, não o resolve e acrescenta o medo, a pressão, a angústia e o sofrimento.
 
Se andarmos mais atentos, provavelmente passaremos a ver muita mais violência do que a que víamos anteriormente, a começar logo por aqueles casais que se dão na perfeição na rua, mas que dentro das quatro paredes tudo pode acontecer.
 
Há muitos homens vítimas de violência, apesar de, na sua maioria, os casos mais recorrentes serem os de mulheres. Entre os jovens já existem muitos mais casos do que o que se previa, o que quer dizer que, muitas mais pessoas vivem nesse ambiente, que o escondem e que o transmitem aos seus filhos. Sejamos cidadãos mais ativos, mais conscientes e mais capazes de detetar aquilo que foge ao “normal”, esta é uma tarefa de todos. Pode-se fazer uma queixa anónima para as autoridades ou ligar para a Linha de Apoio à Vítima através do número 116 006. A chamada é gratuita e pode salvar uma vida!
 
Fátima Fernandes