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Ciência associa má qualidade do sono à doença de Alzheimer

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Fechar os olhos e descansar à noite, «é vital para o desenvolvimento físico, emocional e cognitivo e tem impacto nos sistemas imunológico e metabólico».

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Num apontamento da Fundação Francisco Manuel dos Santos, diversos especialistas demonstram a importância do sono, as consequências de não dormir as horas necessárias e fazem o retrato da sociedade portuguesa – onde a população tem a pior qualidade de sono do mundo.

Enquanto dormimos, é feita uma limpeza de substâncias perigosas, são selecionadas memórias e é segregada a hormona do crescimento, entre muitas outras funções. Vários especialistas do sono desvendam o que acontece durante as horas em que se está de olhos fechados, explicam a relação, cada vez mais estreita, com as doenças neurodegenerativas e lembram os mistérios ainda por descobrir.

“Ainda não se sabe porque é que precisamos de dormir. Mas acredita-se que o cérebro tem de descansar”, diz Anselmo Pinto, otorrinolaringologista e especialista em sono, notando que está em causa o repouso de “um super computador”, com 133 triliões de ligações a assegurar a manutenção das funções orgânicas e que realiza 4 milhões de ações por segundo.

Quando fechamos os olhos e vamos perdendo a ligação ao mundo, não há, porém, um apagão, garante Joaquim Moita, presidente da Associação Portuguesa do sono: “O cérebro não pára”. Durante a noite, quando dormimos, é, aliás, feita uma limpeza. “Toda a célula, órgão ou máquina que transforma energia produz desperdício. E, se fora do cérebro temos um sistema de limpeza, que é o sistema linfático, no cérebro temos o sistema glinfático que, não tendo vasos próprios, utiliza veias e artérias”.

Ou seja, é um mecanismo do cérebro para retirar o lixo e assim eliminar os resíduos tóxicos que se acumulam no sistema nervoso central, explica no mesmo apontamento da FFMS.

“Durante o sono ocorre, no sistema nervoso central, uma limpeza de substâncias nocivas como as beta-amiloide”, umas proteínas que quando se acumulam podem ser perigosas, esclarece, por seu lado, a neurologista Dulce Neutel, garantindo que esta não é a única função do sono. “Há várias”, defende, notando que quantos “mais estudos se fazem mais funções se descobrem”. É à noite, por exemplo, que se guardam e selecionam as memórias.

A criatividade parece estar também ligada com a atividade cerebral durante o sono. “Mas para ela contribui outro tipo de ondas, ou seja, as ondas da fase REM [Rapid Eye Movement] do sono, em que se dão os sonhos”, esclarece Joaquim Moita.

Apesar de haver ainda muito por desvendar, há situações que não levantam dúvidas. Uma delas é o papel reparador do sono, garante Teresa Paiva, neurologista, especialista em medicina do sono e responsável pelo Centro de Eletroencefalografia e Neurofisiologia Clínica (CENC).

Dormir pouco tem tantas e tão variadas consequências. Logo a começar pela diminuição das defesas. “Fica-se mais susceptível a bactérias e vírus”, nota Dulce Neutel. Mas também tem influência direta no peso, diz a mesma especialista: “Não dormir altera o sistema metabólico, pois durante a noite de sono liberta-se a hormona da saciedade”.

Uma investigação da Universidade de Uppsala, na Suécia, veio confirmar que a falta de descanso noturno pode favorecer o engordar, verificando que a privação do sono reduz o gasto de energia no dia seguinte entre 5% e 20%. Quem não cumpre o repouso do cérebro fica também com “menos bom senso social”, alerta Neutel, esclarecendo a razão pela qual a falta de sono pode tornar as pessoas mais desinibidas: “Uma das funções do lobo central é a inibição social. Quando fica sensível perde essa função inibitória”, afetando também a atenção e dando lugar a pequenos acidentes e até a outros mais graves quando se conduz.

“Todas as nossas funções cerebrais se tornam menos eficientes quando existe uma perturbação do sono. A maioria das funções cerebrais, como a memória, a atenção, a concentração, as nossas capacidades visou-perspectivas, visou-construtivas, executivas, o pensamento abstracto, a linguagem, as emoções e mesmo a destreza motora dependem do sono”, enumera Carla Bentes, neurologista do Hospital da Luz e da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa no mesmo apontamento.

São vários os estudos que nos últimos tempos têm chamado a atenção para a relação que existe entre o sono e várias doenças. “Sabe-se, por exemplo, que dormir pouco ou até dormir muito está relacionado com o cancro, enfartes do miocárdio, diabetes, hipertensão e doenças neuro degenerativas”, descreve Anselmo Pinto.

Um estudo recente demonstrou que os jovens que dormem mal são mais propensos a desenvolver Alzheimer, isto por a falta de sono elevar o nível de uma proteína (tau) no sangue, que está relacionada com a doença. E diversas outras investigações têm revelado existir uma relação entre os problemas de sono e o Alzheimer. É o caso de um recente trabalho desenvolvido pela Fundação Pasqual Maragall, de Barcelona, segundo a qual as pessoas que dormem mal, nomeadamente com insónias, manifestam alterações em zonas do cérebro que também são afetadas no estágio inicial daquela doença.

Dulce Neutel garante que as substâncias nocivas (beta-amilóides) que durante o sono são alvo de uma limpeza, são precisamente aquelas que também estão em excesso nos doentes com Alzheimer. “Não há dúvida que dormir pouco é um risco para desenvolver demência”, garante Teresa Paiva.

“Praticamente todas, se não todas, as doenças neurológicas podem associar-se a alterações do sono”, garante a neurologista Carla Bentes, explicando: “As alterações do sono são transversais a diferentes doenças neurológicas”, desde AVC, dores de cabeça, epilepsia, esclerose múltipla, demência, Parkinson, entre outras.

Os problemas do sono são transversais a todas as idades, nota Carla Bentes, explicando que, “Às vezes, pequenos acontecimentos na infância podem ser determinantes para a qualidade do descanso noturno na fase adulta. Segundo Teresa Paiva, um episódio marcante nos primeiros anos de vida, como abusos, casos de bullying ou outros podem mais tarde ser responsáveis por distúrbios de sono.

Uma investigação do neurocientista Adrian Owen, da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, feita com mais de 40 mil inquiridos em todo o mundo, concluiu que o ideal era dormir entre sete e oito horas. Menos tempo prejudicava o raciocínio; mas dormir de mais também.

No mesmo apontamento da FFMS lê-se que, estima-se que um terço dos adultos tenha queixas de insónia e que 10% sofra de insónia crónica. Traduzindo: demoram mais de 30 minutos a adormecer em três ou mais noites da semana ao longo de 3 meses, no mínimo.

As insónias não são todas iguais, nota Marta Gonçalves: algumas pessoas têm dificuldade de adormecer, outras despertam a meio da noite e depois não conseguem dormir e outras ainda acordam mais cedo do que deviam. As causas, essas, podem ser variadas — como comportamentos que prejudicam, como o consumo de estimulantes, ou doenças como as pernas inquietas ou a apneia, observa.

Os especialistas garantem que, a terapêutica mais eficaz parece ser a cognitiva comportamental, alertando para o perigo de se achar que um comprimido para dormir resolve tudo. “Um comprimido não faz com que uma pessoa deixe de ser maltratada pelo marido, ou que o filho deixe de estar doente”, diz Anselmo Pinto, avisando que muitas vezes não se dorme devido a “problemas laterais” que têm de ser resolvidos.

Hoje em dia, grande parte dos distúrbios do sono, têm tratamento. No entanto, alguns são mais difíceis de vencer. Uma das perturbações que está a chamar a atenção dos médicos afeta muitos jovens e, resumindo em poucas palavras, é como se vivessem noutra zona do mundo, com outro fuso horário. “São pessoas que têm um atraso da fase do sono”, refere Teresa Paiva, explicando que estas pessoas apenas têm sono muito tarde. Podem, acrescenta Marta Gonçalves, ser tratadas com fototerapia (tratamento com recurso a luz), tomar melatonina (hormona que regula o sono) ou tentar resolver o problema com a alteração de alguns comportamentos. Mas nem sempre têm solução.

“São casos que têm muitas recaídas”, avisa Teresa Paiva, que em entrevistas que tem dado explica que se trata de um problema “muito português” que está relacionado com os maus hábitos de sono da população — que é das que mais tarde se deita em todo o mundo.

Além de se deitarem tarde, mais de 20% da população dorme menos de cinco horas e quase 6% dorme mais de 9 horas, segundo dados de vários estudos nacionais como o EpiReuma, coordenado por Helena Canhão e Jaime Branco. À má qualidade do descanso junta-se a elevada quantidade de problemas de sono. Ao todo atingem 60% dos portugueses: três milhões apresentam queixas de insónia, dois milhões ressonam, um milhão sofre de síndroma de pernas inquietas e um milhão vive com apneia, alerta o mesmo apontamento.