Família

O seu filho é o “centro da casa?” Saiba as consequências

 
Para os especialistas, são desastrosas as consequências de não se perceber e atribuir a cada membro da família o papel correspondente.

 
Com maior ou menor frequência, ouvirmos os pais aceitarem a condição de que os filhos comandam a vida familiar. Se essa posição faz sentido durante o primeiro ano de vida, quando o bebé é “quase como que um mistério” para os pais e implica um conjunto de cuidados permanentes, essa postura tem de ser alterada à medida em que o mais pequeno precisa e vai ganhando mais autonomia.
 
Além das complicações na vida dos filhos, onde se destaca a dificuldade de socialização e um sentimento de insegurança, deixar a criança comandar a dinâmica familiar pode prejudicar – e muito – o casal.
 
Muitos pais descrevem que, as atividades da família são definidas em função dos filhos, assim como as refeições. As músicas ouvidas no carro e os programas a que se assiste na televisão precisam de acompanhar o gosto dos mais pequenos, nunca dos adultos. Em resumo, são as crianças que comandam o que acontece e o que deixa de acontecer em casa. 
 
Os especialistas alertam que, a partir dos dois anos de idade, as atividades devem incluir a criança e não ser definidas em função dela ou por ela. Esta posição não quer dizer que os pais não se preocupem com os filhos, que não tentem adequar o mais possível os seus interesses ás necessidades dos mais pequenos e daí por diante. Trata-se sim de um excesso de comando por parte das crianças que vai ter prejuízos agravados no futuro próximo.
 
Os especialistas definem o problema como infantolatria e contextualizam a realidade com dados históricos.
 
“O processo de mudança nos conceitos de família iniciado no século XVIII, por Jean-Jacques Rousseau [filósofo suíço, um dos principais nomes do Iluminismo] chegou ao século XX com a ‘religião da maternidade’, em que o bebé é um deus e a mãe, uma santa. Instituiu-se o que é uma boa mãe sob a crença de que ela é responsável e culpada por tudo o que acontece na vida do filho, incluindo a culpa pelo que ele faz ou fará. 
 
Muitos afirmam que a mulher venceu, pois emancipou-se e foi para o mercado de trabalho, mas não: é a criança que entra no século XXI como vitoriosa. Esta é a semente da infantolatria”, explica a psicanalista Marcia Neder, investigadora do Núcleo de Pesquisa de Psicanálise e Educação da Universidade de São Paulo (Nuppe-USP) e autora do livro “Déspotas Mirins – O Poder nas Novas Famílias”.
 
Em poucas palavras, Márcia Neder define infantolatria como “a instituição da mãe como súdita do filho e o adulto que se coloca absolutamente disponível para a criança”. Os pais assumem tudo e os filhos são desresponsabilizados pelos seus atos. “Um bebé não tem poder para determinar como será a dinâmica familiar. Se isso acontece, é porque os pais promovem”, sublinha a mesma especialista alertando para a realidade.
 
“Não é possível dar continuidade a esta postura durante muito tempo, pois o reinado das crianças termina aquando da sua entrada na creche, onde terá de se confrontar seja com a rejeição dos outros por querer mandar em todos, seja com a sua falta de capacidade para se relacionar e acatar as orientações do estabelecimento de ensino.”
 
Vera Blondina Zimmermann, psicóloga do Centro de Referência da Infância e Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) reforça esta ideia acrescentando que, “a infantolatria ganha espaço quando os pais não sabem ou não conseguem fazer essa adequação da criança à realidade que a rodeia e a mantêm no centro das atenções por tempo indefinido.”
 
A mesma psicóloga realça que, “numa família com um relacionamento saudável, o filho entra e tem que ser adaptado à dinâmica da casa, à rotina dos adultos e não ao contrário.”
 
Se muitos pais sabem que, aos poucos vão separando os interesses da criança dos seus e fazendo com que cada um respeite o espaço e tempo de cada membro, ainda são muito significativos os casos de famílias que vivem verdadeiros dramas sem saber como contornar a situação. A criança tem de ter a TV ligada no seu canal preferido, só come o que lhe apetece e só vai onde deseja… Para as especialistas citadas, “muitos pais pensam que estão a tornar crianças mais felizes, saudáveis e com autoestima, mas é precisamente o contrário, dado que, à medida em que o mais pequeno percebe que não é aceite no meio dos demais, acaba por culpabilizar os pais por essa falta de preparação para o mundo e sofre com essa sensação de rejeição.”
 
A criança sentirá a falta de uma referência forte de segurança de um adulto na sua formação e, de acordo com a psicóloga Vera, isso só ocorre com um combate a estes excessos e à capacidade dos pais educarem com a noção de que o mais pequeno é mais novo e imaturo, como dita a idade, pelo que, só por isso já não pode comandar os interesses dos outros de forma alguma. Depois é preciso instituir o respeito pelas outras pessoas, o que se consegue também com o exemplo e não com a falta de atitude nas mais variadas situações.
 
Márcia Neder adianta, “o filho educado neste modelo, ao chegar à idade adulta, sentirá uma enorme frustração por ver as diferenças nos outros. Ver os colegas com outro tipo de oportunidades e realização será para este filho um objeto de revolta contra os pais que não lhe transmitiram essa força” com simples negações e afirmações de autoridade em casa.
 
“A criança que encara o mundo em função do seu umbigo, acredita que todos têm de parar para ela passar. Com este pensamento, terá muitas dificuldades em viver uma realidade diferente, pois os pais e todos os adultos sabem que têm de se adaptar ao mundo e não ao contrário.” 
 
Para Vera, “valorizar excessivamente os mais pequenos e nivelá-los aos adultos é o resultado de uma projeção narcísica dos pais para com os filhos, que se revêm nessas habilidades e aplaudem o seu talento já tão ‘ditador’ em crianças.”
 
Márcia Neder acrescenta que, “Isso tudo tem a ver com a vaidade da mãe, que considera o filho como uma parte muito melhorada de si própria, pelo que faz questão de a evidenciar e prolongar como sendo a criatura mais importante do mundo.”
 
Os primeiros sinais de que algo está a falhar na educação são os alertas da escola dando conta de falta de cumprimento de regras, de dificuldade no relacionamento com os seus pares e de incapacidade para respeitar os demais adultos.
 
Perante estes relatos, muitos pais ainda culpabilizam a escola que os está a advertir para um problema que terá consequências crescentes ao longo do percurso da criança e futuro adulto.  “Mas os pais devem sim acatar e ver onde estão a falhar para poder melhorar. Uma criança ‘bem educada’ está confortável em todas as situações, mesmo que demore alguns momentos a integrar-se. Pelo contrário, os problemas continuam quando as bases de educação não são as mais corretas”, sublinha a psicóloga.
 
Márcia Neder recorda que, “a criança transporta para a escola aquilo que aprendeu em casa, pelo que, se não se consegue relacionar com os colegas, o problema tem de ser revisto com os pais.”
 
Vera é realista a analisar o problema: “Em alguns casos dá para corrigir comportamentos, mas muitos pais preferem culpar o ‘mundo injusto com o seu filho perfeito’, a melhorarem a sua conduta de educadores e adultos responsáveis, o que impede que o filho entenda as necessidades dos outros. Desta forma, estão reforçados os problemas de inadequação para a adaptação social”.
 
Depois, não se pode desvalorizar um outro ponto essencial. A relação familiar raras vezes resiste a este modelo de “mãe santa e filho deus”. O pai que acaba por não ter um papel (a menos que as coisas corram mesmo muito mal e faça falta um alicerce de peso em termos sociais) acaba por se afastar progressivamente da relação mãe/filho.
 
“Há homens que ainda tentam alterar alguma coisa com os seus alertas, mas perante um cenário instituído, acabam por seguir outra orientação.”
 
Quer isto dizer que, além de todas as complicações causadas pela infantolatria na vida dos filhos, ela prejudica – e muito – o casal que a promove. 
 
“Na relação saudável, o casal continua a ser a base mais importante da família mesmo com a chegada da criança. Se os pais mantêm o filho no centro por mais tempo do que o necessário, acabam por se afastar por falta de tempo, de motivação e de interesse mútuo.”
 
Para Vera Z., o ‘marido’ e a ‘mulher’ passam a ser o ‘pai’ e a ‘mãe’. E se numa casa a mãe é a santa e o filho é o deus, onde fica o espaço do pai?”, questiona.
 
Márcia N. coloca-se no plano masculino, “Muitos homens tentam entrar, reconquistar o seu espaço, mas outros simplesmente abandonam a vida que têm e com a qual não se identificam.”
 
Para terminar, as especialistas alertam: “sabendo de todos estes problemas, cabe aos pais evitar estes estragos que, em pouco tempo, vão arruinar toda a estrutura familiar.”
 
Márcia Neder deixa a sua perspetiva futura, “Não sou adivinha, mas creio que a nova estrutura familiar, em que os pais também assumem funções na criação dos filhos e as mães seguem carreiras por prazer, pode ajudar a mudar o panorama, assim como as famílias em que o pai assume um papel equiparado ao da mãe, dentro das suas naturais distinções. Penso que não vamos combater estes problemas, mas que podemos ajudar a mudar mentalidades com este tipo de alertas.”
 
Vera Z é menos otimista e defende que é muito difícil mudar a sociedade e, ainda mais neste tempo acelerado em que se para pouco para refletir e para analisar os erros ou o que se faz menos bem. 
 
Nesse sentido, “existe uma tendência para considerar como normal e natural até que se sofram mesmo as consequências de um modelo sem capacidade de sobreviver. Esgotado o problema, pode ser que se faça alguma coisa.”
 
Fátima Fernandes