“Percebi que alguns traumas iniciados na infância continuavam a afetar-me todos os dias”, diz a psicóloga Nicole Lepera em entrevista à BBC News.
Podemos achar que tivemos uma infância “normal” e tranquila, e descobrirmos na vida adulta que carregamos efeitos físicos de experiências negativas das quais nem nos lembramos, mas é precisamente aí que reside o nosso mal-estar.
Os traumas de infância são mais comuns do que se imagina porque não se restringem a experiências que ameaçam a vida, como violência, abuso ou desastres: podem envolver, por exemplo, necessidades emocionais não atendidas por cuidadores que não sabiam lidar nem com as suas emoções, nem com as dos filhos.
Há na sociedade uma espécie de “epidemia invisível” em que milhares de adultos tiveram o desenvolvimento emocional interrompido e reagem como se estivessem na infância: são crianças do tamanho de adultos porque não receberam carinho e compreensão dos pais, afirma a psicóloga holística e autora de diversos livros.
Se não olharmos para dentro de nós, se não identificarmos o que a nossa criança interior nos diz e necessita, dificilmente conseguiremos evoluir e libertar-nos de uma dor que ficou presa nesse tempo.
A psicóloga norte-americana, Nicole Lepera partilha diariamente vídeos e textos nas redes sociais, com o intuito de ajudar os seus seguidores a tratarem-se, pois acredita que nem todas as pessoas têm acesso a um psicólogo, a uma terapia, mas que todos, de algum modo, carregamos traumas de infância que, ao serem entendidos e tratados, podemos encontrar um caminho mais livre e feliz.
Psicóloga clínica formada pela Universidade de Cornell, doutorada pela New School for Social Research, Nicole Lepera tornou-se influenciadora e autora best seller a partir de 2018, quando começou a partilhar a sua própria experiência de infância e aquilo que a impedia de ser mais feliz, apesar de encontrar realização profissional.
A especialista relata que, a partir dos seus traumas entendeu o quanto os seus pacientes e seguidores viviam condicionados pelos traumas de infância e não hesitou em dar o seu contributo aos mais de 8 milhões que a seguem através das plataformas digitais.
Um outro ponto de partida para esse trabalho diário foi compreender que, os 50 minutos semanais de terapia psicológica que os pacientes recebem numa clínica não são suficientes para que a pessoa consiga ultrapassar os seus dramas, dar um novo sentido à sua vida e sentir-se bem. Nesse contexto, propôs-se desenvolver um método que ela chama de “psicologia holística”. “Apenas pensar positivamente não era suficiente, sendo necessário incorporar o corpo, o corpo no qual a nossa mente subconsciente foi impressa desde a nossa infância”.
Desse modo, Nicole Lepera conjuga as terapias comprovadas da psicologia clínica com práticas que incluem atividades diárias que envolvem escrita, exercícios físicos, meditação, contacto com a natureza e principalmente o método da reparentalização, que incentiva a que a própria pessoa que viveu o trauma torne-se a figura parental sábia que lhe faltou na infância.
Em entrevista à BBC News Brasil, Lepera explica estes conceitos, confidencia como descobriu que a sua criança interior não estava bem e rebate as críticas dos que veem no seu trabalho um desincentivo a que mais pessoas procurem ajuda psiquiátrica e a assistência de um psicólogo.
“Eu nunca diria que uma pessoa não deve fazer uma terapia. Muito pelo contrário, quem tem possibilidade e recursos, deve fazê-la”. Até porque, mesmo quem teve uma infância “normal” tem traumas para superar, sublinha dando o seu próprio exemplo em que, aparentemente tinha tudo, mas não conseguia ser feliz, nem valorizar as suas conquistas até entender a causa do seu trauma.
Lepera passou por diversos episódios físicos, por mal-estar emocional até compreender que, apesar de ter uma família próxima e que lhe dava tudo, sentia-se emocionalmente sozinha. A sua família não conseguia expressar emoções difíceis, nem entender as dos filhos e isso fazia-a sofrer e proteger-se emocionalmente por não se sentir acolhida e acarinhada.
Na visão da psicóloga, o conceito de trauma é mais amplo do que experiências que alteram a vida de uma pessoa ou oferecem risco de dano físico, como violência, desastres ou abuso. “Trauma não é apenas o que ocorreu consigo, mas também o que não ocorreu e que lhe faz falta”, enfatiza.
” Mesmo que um adulto não saiba apontar concretamente o que sente, todos sentimos que gostaríamos de ter recebido mais amor, atenção e carinho, conversar mais, partilhar quem somos e receber também dos outros, em especial dos nossos pais”. Ao não termos esse cuidado, acabamos por viver numa permanente sensação de falta; de vazio que impede que estejamos bem, mesmo quando temos tudo em termos materiais e até de realização profissional, explica.
Muitas pessoas começaram a vida num ambiente ameaçador e traumático e não conseguem libertar-se dele, acabando por só lidar com pessoas que lhes provocam as mesmas emoções negativas, o que, segundo Nicole Lepera, é devastador.
A psicóloga realça alguns arquétipos de traumas subestimados pelos pais como sendo: adultos que negam a realidade dos mais novos, que não os ouvem, respeitam, aceitam, que não olham para as crianças com capacidade de tentar entender o que estão a sentir, que as pressionam para serem isto ou aquilo, para corresponderem “aos ideais” da família ou da sociedade, que não estabelecem limites e que não as orientam dando uma explicação que os mais novos sejam capazes de entender.
'A realidade para a maioria de nós é que não tivemos cuidadores equipados com a capacidade de processar e navegar pelas suas próprias emoções', diz Lepera deixando a questão:
Somos todos crianças por dentro?
De acordo com Nicole Lepera, a maioria de nós caminha em corpos de adultos, mas sente as necessidades não satisfeitas da infância. Andamos à procura do amor que não recebemos dos nossos pais e, não encontrando alternativa, acabamos por imitá-los, mantendo a imaturidade emocional que colhemos. Sofremos sem saber porquê e não conseguimos crescer e amadurecer verdadeiramente porque, no fundo, somos sempre aquelas crianças frágeis à procura de amor, carinho e atenção e, como não os recebemos, andamos tristes, revoltados, amargurados e doentes, explica.
Ao não nos sentirmos seguros para expressar as nossas emoções, repetimos os hábitos dos nossos pais como meio para escondermos a dor que sentimos. Não conseguimos falar de emoções complexas, de algo que nos aconteceu e que nos magoou e fugimos cada vez mais de nós próprios.
Ao mesmo canal televisivo, Lepera defende que atualizar a nossa “versão adulta” envolve reconhecer esse padrão e aprender a reagir de novas maneiras, fora do automático.
Lepera deixa algumas dicas para ser “os pais sábios da sua criança” que mais não são do que admitir que, cada um de nós deve ir ao fundo de si mesmo, entender o que a sua criança interior precisa e dar-lhe um cuidado especial.
Não devemos estar à espera desse carinho e proteção dos nossos pais que, na realidade não souberam acarinhar-nos, mas sim, fazermos nós esse trabalho de apoio a nós mesmos.
“Significa aprender a identificar e cuidar das suas necessidades, físicas e emocionais, principalmente as que lhes foram negadas na infância”, diz, destacando que a criança em geral quer ser vista, ouvida e valorizada.
Lepera cita que muitos adultos descobrem que vivem sob padrões da infância, reproduzindo, por exemplo, o pai interno crítico, negando a própria realidade ou priorizando a necessidade dos outros ao redor em vez das próprias.
O processo, segundo a psicóloga, envolve olhar atentamente para as próprias emoções e reações ao stress, por meio de exercícios de respiração profunda e observação dos sentimentos. Inclui também estabelecer limites para o que lhe causa stress e emoções negativas e cumprir promessas positivas diárias para si mesmo, como aprender a dizer não, beber mais água, ler um livro, escrever um diário. Outra recomendação importante é a de redescobrir atividades que causavam encantamento na infância, sem compromisso de ganhar dinheiro ou perfeição: aprender a costurar, estudar um idioma, pintar, cuidar das plantas, elogiar estranhos. “Algo feito por prazer, não por uma recompensa externa”, aconselha na mesma entrevista à BBC News.
Tal esforço em mexer em lembranças antigas pode despertar sentimentos de raiva e tristeza que fazem parte do processo, alerta Lepera; muitos desejam cobrar um pedido de desculpas ou escolhem até romper com a família, dependendo da situação. “Primeiro é preciso normalizar o sentimento que vem quando chegarmos à consciência de que fomos feridos. Depois, podemos tentar conversar com quem nos magoou, mas também devemos ter em conta que, nem sempre as pessoas reagem como gostaríamos, que até desmentem o que sentimos ou desvalorizam. A partir daí, ainda faz mais sentido que nos coloquemos “como pais da nossa própria criança interior” e que decidamos aquilo que nos possa dar mais prazer e bem-estar.
Há quem opte por afastar-se de quem lhe provoca essa dor, existem pessoas que conseguem lidar, mas de forma menos próxima e até quem consiga encontrar a compreensão e o carinho que não teve na infância. Também há quem consiga obter um sincero pedido de desculpas com a promessa de que a partir daí, nada irá repetir-se. Cada caso é um caso, mas temos sempre de começar por identificar o que sentimos e, aos poucos, ver a melhor forma de reagir connosco próprios e com quem nos afetou emocionalmente, recomenda a psicóloga sublinhando que nós somos os nossos melhores terapeutas, apesar de ser muito importante ter apoio de um profissional quando não conseguimos ultrapassar algo.
Para finalizar, Lepera deixa este exercício no YouTube em que convida a recordar uma foto da infância e em que, descontraidamente, tentemos identificar o que essa criança estava a sentir num determinado momento. Este é o ponto de partida para um encontro consigo mesmo e a base para que possa iniciar a reparentalização: tornar-se o leitor o pai/mãe da sua criança interior aconselhando-a, satisfazendo-lhe as vontades perdidas, dando-lhe carinho, amor e atenção. Afinal, está tudo dentro de nós à espera de ser descoberto e tratado.