Família

A dor de quem carrega o abandono do pai

 
Tem sido estudado nas últimas décadas a importância de um vínculo afetivo de qualidade entre pais e filhos. Sabe-se cada vez mais que, esse tipo de relação positiva dá lugar ao desenvolvimento sadio e equilibrado, gerando adultos bem estruturados e com uma boa autoestima, no entanto, nem sempre acontece assim.

As razões para que um pai abandone o filho são diversas, sendo que, qualquer uma delas deveria ser exaustivamente ponderada e evitada, sob pena de os mais novos carregarem essa dor pela vida fora. Seja em caso de separação dos pais, seja por motivos profissionais, seja por desavenças familiares, a verdade é que continua a ser uma realidade que há pais que abandonam os seus filhos. É verdade que o mesmo também ocorre com a mãe, no entanto, os apontamentos mostram a maior frequência desse ato praticado por parte do pai até por razões culturais, já que se incutiu que “o pai faria menos falta na educação dos filhos do que a mãe”, o que é falso. O pai tem o seu papel muito bem vincado no desenvolvimento dos filhos. A ele cabe a proteção, a compreensão, o carinho, a brincadeira, a sociedade; o mostrar-lhe os caminhos que pode e não pode seguir e daí por diante. O pai faz tanta falta como a mãe nas várias etapas de desenvolvimento dos filhos.
 
Na posição dos especialistas na matéria, «a marca que o abandono do pai cria num filho provoca um vazio emocional de grandes dimensões». Trata-se de um enorme buraco isolado, que deprime e dá lugar à desestruturação emocional da nossa realidade pessoal a todos os níveis, reforçam.
 
Os estudos levados a cabo ao longo dos anos mostram que, «os vínculos afetivos saudáveis garantem o desenvolvimento de uma vida plena na qual reinarão os relacionamentos sadios, a autoestima saudável, a segurança e a confiança nos outros». Por outro lado, o apego inseguro conduz à insegurança, à baixa autoestima e à desconfiança nas pessoas que nos rodeiam, sublinham os mesmos especialistas na área da psicologia.
 
Um vínculo afetivo negativo entre pais e filhos gera comportamentos destrutivos e uma enorme angústia. Portanto, realizar um exercício de introspeção e de posterior distanciamento sobre este facto, ajuda-nos a compreendê-lo e a elaborá-lo para garantir uma maior libertação emocional e estruturação da nossa personalidade.
 
Antes de avançarmos para uma análise mais aprofundada sobre o assunto, importa realçar que, há situações em que o pai está presente; vive na mesma casa, ainda assim não é capaz de dar amor, carinho e atenção aos filhos, razão pela qual é considerado ausente. Esta realidade também era muito comum no passado recente, uma vez que, a educação dos filhos estava entregue à mãe. Estes filhos sofrem a mesma sensação de abandono do pai do que as outras crianças que viram o progenitor partir e não mais voltar ao seu encontro.
 
Depois, é de ter em conta que, para a criança, existe uma enorme dificuldade em definir um pai e a relação do abandono.
 
Hoje torna-se mais fácil falar sobre o assunto abertamente, já que é comum que a criança fale com os colegas, amigos e professores sobre o assunto. Mais facilmente a mãe também se senta com ele e lhe explica o que se passa, mas no passado, a dor era imensa. A criança carregava esse peso sozinha, no seu silêncio e sem saber como se libertar dessa dor e dessa angústia.
 
Apesar de nos nossos dias ser mais acessível a uma criança falar sobre a dor do abandono do pai, temos de ter em conta que, para nenhum menino ou menina neste mundo é fácil assumir e dizer a si mesma que o pai a deixou, mas isso tem de ser falado abertamente, pois só dessa forma começará a ir ao fundo desse vazio emocional.
 
Ao mesmo tempo, os especialistas registam que há vários tipos de abandono:
 
O pai ausente emocionalmente, mas presente de forma física. Se examinarmos a realidade socioambiental ao nosso redor, entenderemos que esta forma de criação tem sido muito comum ao longo dos anos.
 
O pai que nos abandonou antes, durante ou posteriormente à nossa infância. A dor do abandono físico e emocional por escolha das figuras de referência planta importantes sementes na nossa maturidade. É difícil gerir  a realidade que cada um tem que viver nestes casos. A criança não consegue compreender a razão pela qual aquela pessoa que a deveria proteger e compreender se foi embora, pelo que terá de, aos poucos, ir encontrando algumas respostas que a ajudem a compreender a realidade.
 
O pai que nos abandona física ou afetivamente na juventude ou na idade adulta. Este abandono será encarado, muito provavelmente, como uma traição. Por isso requer uma elaboração verbal muito consciente.
 
E por último, temos a ausência da figura paterna na sua totalidade. Aqui deparamos-nos com várias opções:
 
O pai que morreu cedo e que não teve a possibilidade de assumir o seu papel na vida do filho.
 
O pai que morreu, mas que o filho conheceu.
 
Depois, a criança tem de fazer a  gestão de um vínculo destruído ou destrutivo. Para os especialistas, a elaboração psicológica a nível emocional e a nível de pensamento não apenas depende do filho, mas também de quem está ao seu redor.  A sombra do pai ausente remete, de uma forma ou de outra, para a vida familiar.
 
O trabalho levado a cabo com a criança ou jovem e, em muitos casos, o adulto, vai no sentido de fazer com que o paciente perceba a sua própria realidade. No entanto, os psicólogos alertam que é muito difícil aceitá-la e que, não é fácil assumir que o pai, vínculo de referência por excelência junto com a mãe, não permaneça nas nossas vidas. Por isso «a sua ausência determina fortemente a nossa própria evolução emocional».
 
Em muitos casos, o que acaba por acontecer é que, um outro membro da família assuma esse papel na vida da criança. Muitas vezes será um tio, um padrinho, um avô a quem a criança vai recorrer na procura desse laço afetivo, sublinham os especialistas.
 
Desta forma, precisamos destacar que dependendo do momento evolutivo e das circunstâncias que rodeiam o abandono, assumiremos certas qualidades, tarefas, obrigações ou papéis que não nos correspondem. Assim, importa perceber o que acontece quando o abandono do pai ocorre nas diferentes etapas de desenvolvimento:
 
Se essa figura nos falta de uma forma ou de outra na primeira infância (0-6 anos), será difícil conseguir a plenitude emocional que esta etapa requer, na qual fundamentamos o nosso crescimento.
 
Se o abandono aconteceu na segunda infância (6-12 anos), a dificuldade de consolidar a base do apego saudável também se verá comprometida (ou até destruída). De forma semelhante, na adolescência, etapa na qual é fundamental ter um apoio, uma referência e certos limites muito precisos, é fácil que a aquisição de uma identidade sólida seja desestruturada.
 
Os psicólogos reforçam ainda que,   no caso da infância e da adolescência, momentos evolutivos nos quais a personalidade não está estruturada, a ansiedade, a tristeza e a dor de uma perda marcarão de forma profunda a nossa forma de ser e de nos relacionarmos com o mundo. Isto é, a formação de uma falta de estrutura interior que naturalmente não deveria ter acontecido. Por isso, «é um facto especialmente traumático que marcará a nossa própria essência e a nossa forma de nos relacionarmos com os outros».
 
Quando o abandono acontece na juventude, e inclusive na idade adulta, a elaboração necessária adquire dois tons, pois «a ausência e o abandono do pai provocam incongruências em nós mesmos e na forma como os relacionamentos precisam ser estabelecidos». É normal ser invadido pela insegurança, a desconfiança e o medo de sermos traídos. Porque o abandono autêntico na idade adulta acaba por ser rapidamente elaborado como uma traição. Neste momento precisamos de fazer uma leitura emocional muito mais consciente e, por isso, sentiremos a necessidade de colocá-lo em palavras. A ajuda de um psicólogo torna-se fundamental em qualquer uma destas etapas, sem esquecer o essencial apoio das pessoas que giram ao nosso redor.
 
Se por um lado é dolorosa a sensação de guardar apenas para nós essa marca de abandono, por outro, o facto de falar sobre o assunto parece que também não é muito fácil, pois tomar consciência também é angustiante, daí a importância de um acompanhamento especializado e atempado, frisam os psicólogos.
 
Falar sobre o assunto permite-nos  conhecer os segredos, entendermos a realidade e sabermos ler as entrelinhas, mas a pessoa nunca está preparada para se desligar da ideia do pai como mentor, protetor e herói, pelo que é preciso aliviar a dor para que se consiga conviver com a perda.
 
Neste ponto, os especialistas evidenciam que, « não falamos de superar a perda, mas sim de conviver com ela». É possível superar a perda de uma carteira, e mesmo do nosso brinquedo favorito, mas superar a perda de um pai é impossível, frisam os psicólogos. No entanto, precisamos de encarar a realidade, sob pena de não nos conseguirmos encontrar dentro de nós próprios.
 
Elaborar e gerir a marca do abandono de um pai «requer um perdão individual e familiar que nem sempre é fácil de conseguir».
 
Tornarmo-nos conscientes disso traduz-se em avanços, «pois iremos separar a dor dos outros da nossa». Mesmo que nos tornemos vulneráveis, é importante que façamos este processo, já que é muito mais libertador do que fechar a dor numa concha e andar a vida à procura de referências que nos possam permitir esse fingimento e fuga da realidade. Neste sentido, seja em que etapa de vida for, deve-se pedir apoio e, a família também se deve esforçar por participar no processo, uma vez que, em conjunto será muito mais fácil ultrapassar esta dor imensa, dando-lhe uma explicação, uma justificação para que tenha ocorrido.
 
Fátima Fernandes